· Por Ricardo Sobral, advogado (ricms@uol.com.br).
Tenho resistido à tentação de escrever sobre temas sisudos para jornais, revistas e que tais. Se não sobejassem outros, basta o fato de fazê-lo diuturnamente nas lides forenses, construindo ou demolindo tese jurídica não raro de alta indagação. De modo que, para amenizar, prefiro discorrer acerca dos acontecimentos do quotidiano. Hoje, por exemplo, lembrei-me de um deles que não ocorreu no Açu, não teve como teatro uma gameleira, nem foi um tiro de ronqueira, como nos versos fesceninos de Sesyom.
Mas, aconteceu, afianço, certifico e dou fé. Como é cediço, muito já se escreveu sobre a figura da melhor amiga. É tarefa para os doutores em ciências aplicáveis à espécie explicar o fenômeno. Se é certo, por um lado, que a mim, qual o sapateiro de Apeles, não me é dado o direito de ir além das sandálias; por outro, não é menos certo que a prudência recomenda que eu me limite tão somente ao relato, ipso facto, sem tentar explica-lo cientificamente por não deter conhecimento especializado em comportamento.
Os nomes são tão verdadeiros quanto uma nota de mil reais. É bom para todos que assim seja. Moema é morena clara, cor de jambo, cabelos pretos e lisos, olhos de jabuticaba madura, elétrica, direta e objetiva. Alba é loura, cabelos cacheados, olhos claros, fugidios, gestos lentos, estudados. Uma é para a outra a melhor amiga. Estudam juntas desde a primeira escola até a universidade. Tão bonita e pura amizade tem gerado admiração e até inveja, se é que esta não decorra daquela. Aos vinte e sete anos, experientes, pré-balzaquianas, não há segredo entre elas e pode se afirmar que até então viveram juntas os momentos mais importantes de suas vidas, além de compartilharem tudo, exceto escova de dente e namorado.
- Alba, amiga, não te conto!
- Diga logo, mulher, não faça arrodeio. Quer me matar, é? - disse Alba rindo nervosamente.
- Preciso desabafar, tem que ser com você, minha melhor amiga. Afirmou Moema bem baixinho, com receio de ser ouvida, embora não existisse ninguém por perto.
- Lá vem você outra vez, já sei, o namorado apresentou defeito de fábrica e você o despachou. O código civil, minha filha, chama isso de vício redibitório.
- Não. Nem pensar. Pelo contrário, estou apaixonadíssima. Digo mais, amiga, jamais pensei, nem nos meus devaneios de adolescente, que existisse nesse mundo um homem como Raul. Maravilhoso. Simplesmente é o máximo! Não preciso dizer mais nada. É o máximo!
Moema só tem palavras para enaltecer o namorado, cuidando sempre de acrescentar um novo dote a cada nova referência. O que não varia é o final do elogio: o máximo!
Amiga íntima, fiel, escudeira, solidária e inseparável, até que Alba procura com todas as suas forças exorcizar o fantasma da melhor amiga dizendo Raul é o máximo!
Desgraçadamente, não consegue. Ao contrário, a lembrança vira sonho; o sonho convola-se em desejo, e o desejo mina suas resistências. Sente que já não se governa. Ajoelha-se em cima de caroços de milho, reza profundamente, faz promessa, jura fidelidade à amiga, chora, faz plano de viajar, quem sabe uma temporada no exterior não tiraria do seu ser o “máximo” de Moema?
- Meu Deus, não posso fazer isso com Moema. Afinal, é a minha melhor amiga. Me ajude.
Por certo Deus não ouve os seus gritos de socorro, embora sinceros e tonitroantes como as trombetas de Jericó.
Moema não tarda em observar que se operara em Alba uma mudança radical. Agora, é outra pessoa, praticamente irreconhecível. Raul também mudara, rareia cada vez mais. Quando aparece, alheia-se; revela-se enfadonho, queixoso e contumaz de enxaquecas intermitentes.
Quando Moema descobre a dupla traição chora initerruptamente por quatro noites e quatro dias sem se alimentar. Só água, nem caldinho desce. Pensa que vai morrer de tanta dor; dor que jamais sentira, dor que sequer sabia existir. Sua melhor amiga, mais que o amor da sua vida, havia lhe roubado a alegria de viver. Não sorri mais; não frequenta salão; não se arruma e pouco compra roupas. Vira Dom Casmurro de saia.
E assim vegeta por três intermináveis anos. Entretanto, como não há mal que sempre dure nem bem que seja eterno, um dia amanheceu curada, fortalecida, após ouvir uma voz lhe dizer em sonho a sentença nietzscheana “aquilo que não me mata, só me fortalece”.
A data foi o divisor de águas. Como na canção de Noite Ilustrada, reconhece a queda, levanta, sacude a poeira e dá a volta por cima. Apaixona-se, desta vez com mais intensidade ainda. Beatriz, que assumira o lugar de Alba, comenta:
- Amiga, você me esconde alguma coisa importante. Esse andar sacudido, esse sorriso tipo rio cheio - de barreira a barreira - e essa pele sedosa querem dizer o que?
- Ah! Nem te falei, amiga, pois achei que não valia a pena. Não vai dar certo mesmo. O Rogério não é o meu tipo, e além do mais seu desempenho não pode ser considerado nem mesmo satisfatório: não tem estabilidade, o motor é apenas um ponto zero e só funciona a álcool.
A duras penas, Moema aprendera a lição. Depois, cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça.
Passados tantos anos, sem um só sobressalto, preserva até hoje o namorado e a melhor amiga. Beatriz, como melhor amiga de Moema, contudo, só não entende una cosita: porque Moema continua com Rogério.
- Um dia vou descobrir – se diz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário