08/07/2024

A ANATOMIA PATOLÓGICA DE UM PODER DEGENERADO - POR *ALEX FIÚZA DE MELO

A anatomia patológica de um poder degenerado

Grosso modo, os congressistas (“células”) que ocupam assentos na Câmara Federal (“tecido”), em Brasília, são de dois tipos: os que podem ser classificados como (a) deputados federais, e aqueles que não passam de (b) “vereadores nacionais”.

Os primeiros (a minoria), ainda que eleitos em suas respectivas bases loco-regionais, apresentam roteiro de atuação e comportamento mais adequados à função, dilatados sobre as questões mais amplas do país e aprumados ao diâmetro dos misteres da federação como um todo.

Os segundos (a maioria), de costume antenados exclusivamente aos interesses domésticos de seus “currais” – e, via-de-regra, agitados nos bastidores e silentes no plenário –, atuam, tão somente, como meros “edis de luxo”, na exata medida de sua pequenez e mediocridade, à caça de “trocos” compensatórios pelo aluguel oportunista de seus apequenados mandatos.

Mas existe, ainda, uma subclassificação a pontuar nesses dois grupos, estratificando-os transversalmente em algumas características combinadas.

Inerente aos dois conjuntos, há os que (minoria da minoria) se movimentam por motivações prioritariamente republicanas (do interesse geral da sociedade), honrando a representação popular a si delegadas, e aqueles que, diferentemente (ampla maioria), subordinam toda e qualquer participação legislativa aos interesses próprios e aqueles corporativos de seus financiadores e/ou “comparsas” de ocasião, sem qualquer outro intento que a sua reeleição seguinte, o enriquecimento ilícito e a permanência ad aeternum nos espaços do poder – com o gozo dos privilégios inerentes.

O quadro final dessas combinações é desolador (se não, estarrecedor!): seja a ampla maioria dos deputados federais, quanto a dos “vereadores nacionais”, ambas agem e conspiram, o tempo todo, em favor da reprodução do consuetudinário status quo – marcado pela dominação do establishment patrimonialista – e não dos interesses da nação, do universo de eleitores que careceriam representar – a quem devem, ao fim e ao cabo, os seus próprios mandatos.

Com desenho anatômico um tanto quanto diverso ao da Câmara baixa, na aparência, ainda que com idêntica índole e “pendor motivacional” na substância, configura-se, a seu turno, o Senado Federal, cujo desempenho histórico, para além da contribuição ao equilíbrio representativo entre as unidades federativas – sua função primeva assente na Carta Magna –, parece ratificar, interna corporis, em semelhante grau e equivalente proporção, a mesma subclassificação de sua correlata congênere, corroborando, pelos próprios “frutos” e “estilo” de sua atuação, análoga e alarmante patologia.

Resultado do diagnóstico: ao invés de um regime democrático de insígnias republicanas – como definido na Constituição “Cidadã” –, impõem-se (na prática) aquele de têmperas oligárquicas e divisas descaradamente cleptocráticas, impermeável à vontade popular, descompromissado com o bem comum e (vergonhosamente) protegido em sua impunidade – ainda que formalmente travestido de “democracia” e de “república”.

Desde a alcunha consagrada pelo cientista político Sérgio Abranches, em célebre artigo publicado em 1988, toda essa farsa passou a ser denominada de “presidencialismo de coalizão”: um eufemismo de viés acadêmico, cujo conceito confere condimento e “glamour” ao insidioso e exorbitante fenômeno.

Não é, pois, surpreendente que, na moldura desse quadro notoriamente patológico, “seletos” presidentes de ambas as Casas legislativas, pinçados na penumbra dos conchavos nada republicanos, queiram, usualmente, sem qualquer legitimidade, capturar o comando do país, posando de “Primeiro Ministro” ou de “reizinho” em suas grotescas bufonarias; ou que corruptos cediços e réus contumazes assumam o comando de CPIs, posando, desfaçadamente, em cúmulo escárnio, de regentes “virtuosos” e comandantes “ilibados”; tampouco que a chantagem a Presidentes da República – na contramão da ética republicana – tenha se tornado a moeda de troca habitual dos insondáveis e cabulosos “acordos” políticos planaltinos.

Fato é que, no Brasil, por conta de toda essa distopia, a anomalia sistêmica se impôs, em definitivo, como bizarro e doentio “modelo político”: o Legislativo, ávido de poder e vantagens, ao invés de se restringir a legislar, governa; o Judiciário, ao contrário de tão somente julgar, legisla; e o Executivo, refém de ambos, trafica cargos e favores para manter a falsa “governabilidade”, num jogo de ilusionismo perante uma plateia alienada e ignara, reduzida a mera expectadora de circo – continuamente manipulada pelos grandes meios de comunicação, sócios tradicionais de tão despicienda e sorrateira tramoia.

E assim segue o Brasil, em pleno século XXI, subsumido a uma falsa “democracia” e a um simulado “presidencialismo”, onde quem governa não é nem o povo (por meio de representantes solidários), nem o Presidente da República – acossado e chantageado pelos arroubos delinquentes de pretensos “Primeiros-Ministros”, secundados por pares nauseabundos de todos os calibres.

E tudo – o que é ainda mais grave! – com a anuência e o endosso codelinquente de pérfidos e indecorosos monarcas de toga – garantidores, em “última instância”, da vigente e indignante cleptocracia delitosa.

Sim, o Poder Legislativo se encontra, há muito, com suas “células” e “tecidos” irremediavelmente degenerados, de tumoração maligna notoriamente avançada, a ameaçar de morte – pela corrupção metastática – todo o organismo social e político nacional.

Pois – como já observara a filósofa russo-judia Ayn Rand (1905 - 1982) – quando fica perceptível que as leis já não protegem os cidadãos honestos dos aleivosos corruptos, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos dos homens dignos e honrados; ou quando fica patente que a corrupção é sistematicamente recompensada e a honestidade se converte em permanente auto sacrifício, então pode-se afirmar, sem temor de errar, que a sociedade está, definitivamente, condenada.

*Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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