Texto de introdução ao perfil de Inácio Magalhães Senna
Minha memória urbana do Ceará-Mirim dos anos cinqüenta fixava-se no lá-em-cima e no lá-embaixo. A cidade tomara as encostas de uma elevação que deve ter conhecido o seu momento de glória, antes que os fundadores da cidade a ocupassem. Mas à época era uma gangorra com algumas plataformas para descanso.
Vivíamos literalmente pendurados. As nossas casas, mesmo aterradas e aprumadas, eram equilibristas num plano inclinado. Toda vez que recorríamos à porta de entrada, a ladeira nos apresentava o instável equilíbrio da nossa engenharia.
Da Rua Grande até a praça do mercado, as ruas que apontavam para Várzea de Dentro e Capela, eram planas. Cortavam transversalmente a subida para o Patu e adjacências. Era como um descanso, uma pausa para o fôlego.
Na minha imaginação esse fato deve ter contribuído para a índole cultural do cearamirinense. Tanto que, quando perguntado para onde ia, o itinerante respondia invariavelmente: vou subir (ou descer) – nunca dizia o seu destino real. E também por isso, o andar dos nativos traía uma certa cautela, situando-se entre o esforçado e o cuidadoso.
E as casas se assemelhavam a navios num mar onduloso.
Identificávamos quem não era da cidade, porque estes andavam como escravos alforriados ou gente acanalhada, sem peias, livres das correntes, pernas abertas, debochados.
Até hoje guardo essa característica andarilha. Quando fui estudar no Marista meus colegas me diziam que eu andava como se estivesse “com medo de peido”.
Hoje, a cidade, que nem uma ave, aninhou-se no planalto. Esticou as asas no sentido da antiga mata da usina e da “terra da santa”. Os cristãos-novos, habitantes do Ceará-Mirim do altiplano, são mais afoitos e incorporaram aos pés uma “galocha” motorizada – o automóvel. Mas os antigos ainda conservam a mesma andadura.
Talvez o lá-em-cima e o correspondente lá-embaixo da época referida tenha marcado a minha geração como se esse desnível fosse uma fatalidade, porque não havia alternativa senão caminhar, vencer a distância e o esforço com os próprios pés. Não fossem os caminhões das usinas, proibidos de dar carona na cidade (mas liberados para o transporte de passageiros no trajeto de volta), um ou outro caminhão, sempre comprometido com o transporte de cargas – o “misto” de Fernando Farias, na rota de Coqueiros, o caminhão de Chico Horácio e sua buzina de oito baixos, os velhos caminhões de Luiz Murat, para transporte de cal, de José Paiva e de José Mendes – restavam as camionetas de Manoel Pereira, Herbert Dantas (Betinho), José Bonifácio, Valdemar de Sá e Euclides Cavalcanti, o “land rover” de Vital Correia, e os jipes das usinas, que eu me lembre.
Por isso, o trabalho dos vendedores e feirantes era tão penoso.
José Soares, conhecido como “Zé Gago”, emérito saxofonista e orador do Náutico Esporte Clube, durante o dia conduzia o seu carrinho de sorvetes, anunciando o produto com aquele fon-fon das antigas buzinas de bicicletas; os vendedores de mugunzá (chá de burro), arroz doce, geléia com coco, cavaco chinês (anunciado com um triângulo usado nos grupos de baião), algodão doce, cocada, além do peso, andavam com maior cautela, um olho no conteúdo para não derrubá-lo, outro no possível freguês.
E os pregoeiros das feiras sabatinas e domingueiras?
A cantilena era entrecortada pelo esforço do trajeto lá-em-cima da feira, mas ainda assim animada. Roufenhos, uns que outros, esganiçados alguns. As mulheres se superavam, como estivessem numa disputa pela voz mais gritada. Essas nem se importavam com o peso dos tabuleiros nas cabeças, sua atenção concentrava-se na potência da voz. (Ainda hoje tenho para mim que mais impressionante que o pregão delas, só os gritos modulados pela língua das mulheres bérberes)
Quem não estava nem aí para o sobe-e-desce eram os orgulhosos proprietários dos carros de rolimãs, meninos grandes de calças curtas . Valia a pena descer embalado que nem o “cachorro da molesta”, mesmo pagando o preço da subida pesada.
Os mais afortunados, cavaleiros garbosos que nem Chico Campos e João Neto, (meus centauros redivivos), e os teimosos donos de burros de transporte de água, riam à toa. Embora os patriarcas cearamirinenses gostassem de ir a pés “fazer a feira”, orgulhosos, com cestas à mão. Essa era tarefa de homem. Era a oportunidade de disputar com as mulheres no ofício em que elas eram mestras – na arte de pechinchar.
Bicicleta só era usada por raríssimos heróis ou por quem transitava pelas planuras.
Até pedalar o velocípede era cansativo, mesmo para uma criança cheia de energia. Salvo se morasse numa das ruas de descanso, já referidas. Que nem eu, que morava em frente ao cinema de Jorge Moura, na então rua Pedro Correia, hoje Heráclito Vilar, onde também moravam Chicó Pereira e Dona Alzira, Doutor Canindé Cavalcanti, Batu de Sá, Chico Leopoldino e onde ficava a “venda” de Chico Dantas. Era uma calçada só, de lá-de-casa até a casa de Jorge Moura.
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