'Quer uma balinha?': Bastidores do conclave revelam como um discreto azarão americano se tornou o Papa Leão XIV
Os cardeais que elegeram o Papa Leão XIV para liderar a Igreja Católica deixaram a Capela Sistina, no Vaticano, exaustos e famintos. A meditação para iniciar o conclave se arrastou e empurrou a primeira votação para a noite daquele 7 de maio. O resultado foi uma contagem inconclusiva, com três principais concorrentes. Mantendo o voto de sigilo, eles retornaram à Casa Santa Marta, onde estavam isolados sem seus celulares, e começaram a conversar.
Durante o jantar, enquanto um cardeal que não come glúten escolhia legumes e outros se resignavam perante a comida simples, todos avaliavam suas escolhas. O cardeal Pietro Parolin, de 70 anos, o italiano que dirigiu o Vaticano sob o comando do Papa Francisco, havia entrado no conclave como favorito, mas não recebeu apoio esmagador durante a votação. Os italianos estavam divididos, e alguns dos cardeais presentes ficaram incomodados com sua falha em enfatizar as reuniões colaborativas que Francisco priorizava para governar a Igreja.
O cardeal Peter Erdo, da Hungria, de 72 anos, apoiado por uma coalizão de conservadores que incluía alguns africanos, não tinha como ganhar impulso em um eleitorado amplamente indicado por Francisco. Isso deixou o cardeal Robert Francis Prevost, de 69 anos — um discreto azarão americano que, surpreendentemente, surgiu na votação da noite — como uma fonte de interesse particular.
Um missionário que se tornou líder de uma ordem religiosa, bispo peruano e figura influente no Vaticano, Prevost, agora Papa Leão XIV, preencheu muitos dos requisitos que uma ampla gama de cardeais buscava. Sua dupla nacionalidade — América do Norte (Estados Unidos) e América do Sul (Peru) — agradou cardeais nos dois continentes. Quando os prelados sondaram os prelados latino-americanos que o conheciam bem, eles gostaram do que ouviram.
Durante o jantar, Prevost evitou qualquer politicagem ou maquinação óbvia, segundo os cardeais. Na manhã seguinte, ele havia se transformado em uma bola de neve insuspeita que, no fim das contas, deixou pouco espaço para candidaturas rivais e grupos ideológicos.
— Você começa a ver a direção e diz: "Meu Deus, não vou usar as roupas que tenho para cinco dias" — brincou o cardeal Pablo Virgilio Siongco David, das Filipinas. — Vai ser resolvido muito rápido.
Entrevistas com mais de uma dúzia de cardeais, que só puderam divulgar algumas informações devido às regras de sigilo que podem levar à excomunhão, e relatos de fontes internas do Vaticano contaram a história de como Prevost se tornou o Papa Leão XIV. O consenso, surpreendente e que quebrou tabus em torno de um americano desconhecido para muitos fora da Igreja, ocorreu na última quinta-feira, em meio a um Colégio Cardinalício desajeitado, com muitos novos membros que não se conheciam. Eles tinham interesses, idiomas e prioridades diferentes, mas uma única escolha.
Prevost tinha dúvidas sobre o conclave
Após a morte de Francisco, em 21 de abril, cardeais de todo o mundo começaram a chegar a Roma. Eles se juntaram a figuras influentes no Vaticano que comandavam a burocracia da Igreja, incluindo Prevost, cuja carreira Francisco havia impulsionado.
Apesar de seu profundo conhecimento do Vaticano, Prevost ainda estava entre os novatos, tendo se tornado cardeal há menos de dois anos e tendo dúvidas sobre o conclave. Ele, inclusive, pediu ajuda a um dos favoritos, o cardeal Luis Antonio Gokim Tagle, das Filipinas.
Segundo Tagle, que contou sobre a conversa entre ele e Prevost, o americano perguntou: "Como funciona?"
— Eu tinha experiência em conclave, e ele não — disse o cardeal.
Ao contrário de Tagle, ele também não tinha o reconhecimento de nome considerado necessário em uma eleição entre tantos novos cardeais que mal se conheciam. Sem um perfil de destaque ou uma base de apoio evidente, o graduado pela Universidade Villanova, nascido em Chicago, nos Estados Unidos, e naturalizado peruano, passou despercebido.
— Eu nem sabia o nome dele — disse David, das Filipinas.
Mas Prevost também não era um completo desconhecido. Como ex-líder da Ordem de Santo Agostinho, que opera em todo o mundo, e como chefe do escritório do Vaticano que supervisiona todos os bispos, ele havia desenvolvido conexões e apoiadores poderosos. O primeiro deles foi Francisco, que acelerou sua carreira. Além disso, suas décadas no Peru, seu espanhol fluente e a liderança da Pontifícia Comissão para a América Latina lhe proporcionaram relacionamentos profundos e decisivos no continente.
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— Quase todos o conhecemos. Ele é um de nós — disse o cardeal Baltazar Enrique Porras Cardozo, da Venezuela, que o conhece há décadas.
Nas semanas que antecederam o conclave, os cardeais participaram de uma série de reuniões privadas para discutir suas preocupações com o futuro da Igreja. Ao contrário de Francisco, que deixou sua marca com um breve discurso compartilhando sua visão para a Igreja, vários cardeais disseram que as observações de Prevost não chamaram a atenção. "Como todos os outros", disse o cardeal Juan José Omella Omella, da Espanha.
Já o cardeal francês Jean-Paul Vesco, arcebispo de Argel, também não conseguia se lembrar do que o americano havia dito, mas conseguiu conversar com ele à margem das reuniões — o que foi importante, segundo Vesco, porque ele era cada vez mais cogitado como candidato com base em seu currículo "incrível", italiano fluente, reputação de moderado e conexão com Francisco. O cardeal começou a perguntar às pessoas que haviam trabalhado com o americano para avaliá-lo e descobriu que ele ouvia e trabalhava bem em grupo.
— Eu fiz o meu trabalho — disse Vesco. — Tenho que votar. Tenho que conhecer a pessoa.
O cardeal Wilton Gregory, dos Estados Unidos, também disse que Prevost se envolveu “de forma bastante eficaz” nas discussões em grupos menores com os cardeais.
Esses ambientes mais íntimos reforçavam os pontos fortes de Prevost, que havia conquistado uma reputação em Roma como um colaborador estudiosamente preparado, organizado, especialmente como chefe de um alto departamento do Vaticano.
As discussões entre os cardeais
No último dia 3, quatro dias antes do conclave, os cardeais realizaram um sorteio e atribuíram os papéis principais. Com a presença de 127 dos 133 que votaram, Prevost foi escolhido para auxiliar na condução das reuniões diárias antes que elas fossem encerradas e a votação começasse.
Enquanto os diferentes grupos discutiam nas reuniões diárias sobre a direção futura da Igreja, os cardeais das Américas pareciam se unir em torno de Prevost.
O cardeal Timothy M. Dolan, de Nova York, uma figura franca e sociável, disse que tentou conhecer melhor seus compatriotas americanos durante um café da manhã. O cardeal Gerhard Ludwig Müller, da Alemanha, observou uma base eleitoral que parecia estar se formando e afirmou que "os cardeais da América do Sul e América do Norte estavam em bom número".
Cardozo, da Venezuela, disse que cardeais da América Latina e dos Estados Unidos pareciam estar em sintonia em relação a Prevost.
— Quando você tem amizade em primeiro lugar tudo fica mais fácil — disse.
Quanto mais os cardeais aprendiam sobre Prevost, mais gostavam. "Bob, isso poderia ser proposto a você", disse o cardeal Joseph W. Tobin, de Nova Jersey, a Prevost pouco antes do início do conclave.
Para o cardeal Vincent Nichols, da Inglaterra, Prevost tinha muita da experiência que eles buscavam. Ele tinha o coração de um missionário, profundidade acadêmica e conhecimento do mundo. Ele havia dirigido uma diocese como bispo, o que o colocou em contato próximo com os paroquianos, mas também havia trabalhado na Cúria, a burocracia romana que ajuda a governar a Igreja.
Não escapou aos cardeais, de acordo com Nichols, que Parolin, cujo nome era defendido por seus apoiadores dentro e fora do conclave, tinha vasta experiência apenas na burocracia da Igreja.
— Não somos estúpidos — disse o cardeal da Inglaterra.
A eleição do Papa Leão XIV
No último dia 7, após uma longa e solene procissão até a Capela Sistina, as portas se fecharam, os cardeais se acomodaram em seus assentos e fizeram seus votos.
A meditação inicial, com comentários sobre a gravidade da tarefa em questão, durou cerca de uma hora, tanto que Parolin, que conduzia o conclave, perguntou se eles queriam encerrar a noite e adiar a primeira votação para a manhã seguinte.
— Não jantamos e não houve intervalos nem para ir ao banheiro. Mas o grupo decidiu que queria votar — contou David, das Filipinas.
Quando a votação começou, o atraso, sem nenhuma explicação para o mundo exterior, causou comoção entre a multidão que aguardava. Parecia que os cardeais já haviam escolhido um Papa que estaria se vestindo para se apresentar na sacada da Basílica de São Pedro.
Em vez disso, a primeira votação daquela noite equivaleu ao que Omella, da Espanha, chamou de "uma espécie de pesquisa preliminar".
— Na primeira votação, vários candidatos obtiveram votos significativos — disse o cardeal Lazarus You Heung-sik, da Coreia do Sul, segundo a agência de notícias sul-coreana Yonhap.
Fontes do Vaticano disseram que entre esses candidatos estavam Parolin, Erdo e Prevost. Foi quando os cardeais retornaram à casa de hóspedes e começaram a discutir os pontos fortes e fracos dos candidatos.
— Quando chegamos a Santa Marta, houve conversas sobre cada candidato — disse Nichols, da Inglaterra. — É isso que devemos fazer.
As votações da manhã seguinte — a segunda e a terceira do conclave — deixaram o quadro claro.
— Na quarta votação, as cédulas foram esmagadoramente transferidas para Prevost — afirmou Heung-sik.
Sentado atrás do favorito, Müller, da Alemanha, achou que ele parecia calmo. Sentado perto dele, Tagle percebeu que ele respirava fundo à medida que os votos cresciam em seu favor.
— Perguntei a ele: "Quer uma balinha", ao que ele respondeu: "Sim" — relatou.
Durante uma das votações, Tobin, enquanto segurava sua cédula no alto e a colocava na urna, virou-se e viu Prevost, que ele conhecia há cerca de 30 anos.
— Olhei para Bob e ele estava com a cabeça entre as mãos — disse.
Durante a tarde do último dia 8, os cardeais votaram novamente e contaram os votos um a um. Quando Prevost alcançou 89 votos, a maioria mínima de dois terços necessária para se tornar Papa, a sala irrompeu em uma ovação de pé.
— E ele permaneceu sentado — disse David. — Alguém teve que tirá-lo de lá. Estávamos todos com os olhos marejados.
Enquanto a contagem continuava e os votos para Prevost se aproximavam dos três dígitos, Parolin teve que pedir que eles se sentassem para que pudessem terminar.
— Ele obteve uma maioria muito grande de votos — disse o cardeal Désiré Tsarahazana, de Madagascar.
Após sua eleição, os cardeais parabenizaram o Papa Leão XIV. Um conclave curto e sem contestações terminou, e Prevost atravessou as cortinas vermelhas da sacada da Basílica de São Pedro para se apresentar ao mundo como o novo líder da Igreja Católica.
Tagle, o antes favorito que previamente havia sido questionado pelo americano sobre as regras, disse a ele:
— Se houver algo que você queira mudar nas regras do conclave, está tudo em suas mãos agora.
O Globo
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