13/06/2021

NATAL: O BECO DA LAMA É SILENCIADO PELA PANDEMIA

Pandemia silencia o Beco da Lama

Há um ano e três meses, o eco de dezenas de pessoas cantando juntas “O que é o que é”, de Gonzaguinha, não é mais ouvido às quintas-feiras à noite na Cidade Alta. A canção funcionava como um aviso para os que já estavam habituados. Era o sinal de que o Samba de Nazaré se aproximava do fim e, antes mesmo do final da canção, os frequentadores já começavam a pensar em qual seria a próxima parada: alguns seguiriam para o Bardallo’s, no fim da Rua Coronel Cascudo. Outros, para o Bar da Meladinha, apenas um quarteirão distante do Bar de Nazaré. Aglomerações, calor e proximidade, algo inimaginável no mundo pandêmico, eram regra no Beco da Lama e adjacências.

Marca registrada da boemia natalense há décadas, o Beco cresceu em tamanho e importância nos últimos anos. Mais do que um local onde a vida cultural da cidade passou a florescer, ele também se tornou fonte de sustento para dezenas de famílias que prosperaram com a cena cultural da cidade. Mais de um ano depois do começo da pandemia, e ainda sem uma previsão sobre quando será possível retornar ao “velho normal”, trabalhadores e artistas do Beco tentam se adaptar e se ajudar para sobreviver em um cenário ainda marcado pela informalidade, dificuldade de acesso de crédito e recursos para os pequenos empreendedores e trabalhadores da cultura.

Desde que fundou o Bar de Nazaré, em 1994, Maria Nazaré Melo, de 65 anos, a responsável por organizar a mais tradicional roda de samba da cidade, não havia passado tanto tempo longe da vida noturna da Cidade Alta. Grupo de risco para a covid-19, Nazaré está em isolamento desde o começo da pandemia, e aguarda a segunda dose da vacina para completar a imunização. O bar, que fica aberto durante o dia para os poucos clientes que ainda aparecem, está sendo comandado por seu filho. “Eu confesso que até parei de perguntar como estão as coisas, se as mercadorias estão chegando direitinho, porque dá uma tristeza, sabe? A gente sente tanta falta. Não vou mais, para me proteger e proteger os outros, mas que falta faz”, conta Nazaré.

Até mesmo o contato com os sambistas responsáveis por animar a Quinta do Samba foi reduzido. “As notícias que temos é que tem sido um tempo difícil para todos. Não apenas de gente passando necessidade, mas de muita dor e muita perda”, lamenta Nazaré.

A Sociedade de Amigos do Beco da Lama e Adjacências (SAMBA) acompanhou de perto a dificuldade pela qual comerciantes e vendedores informais que atuavam local passaram durante a pandemia. Gorette Barbosa, diretora executiva da entidade, conta que a SAMBA abriu um formulário para que as pessoas que dependiam financeiramente do local e precisassem de ajuda com alimentos e outros itens pudessem se inscrever. Mais de 180 pessoas se cadastraram.

“Nos últimos anos, fomos batalhando por melhorias que eram necessárias há muito tempo no Beco da Lama. Iluminação, transporte para que as pessoas pudessem chegar lá. Aos poucos, à medida que a situação foi melhorando, o que era ótica foi virando bar, muita gente nova começou a chegar”, relata Gorette. Diversas ações, como a pintura no beco e a realização de eventos recorrentes com estrutura para som atraíram novos públicos ao local, e também tiveram impacto no número de vendedores ambulantes e estabelecimentos abertos. Muitos dos comerciantes mais antigos ampliaram a estrutura e fizeram investimentos em mercadorias. “Por isso, quando chegou a pandemia, o baque foi grande. Gente que estava trabalhando como ambulante já estava se propondo a abrir seu próprio comércio, juntando para isso e melhorar suas condições de trabalho”, completa.

Plataformas digitais tentam manter ativa a cena cultural

Além dos bares e restaurantes, o Beco da Lama também é conhecido como um espaço importante para a cultura natalense. É no corredor do camelódromo em frente ao Bar da Meladinha que a cena da música eletrônica da cidade ganhou um novo espaço nos últimos anos, ampliando públicos e garantindo até mesmo um espaço fixo na programação oficial do carnaval da cidade, com o bloco “Acorda, Clubber”.

O produtor cultural Frank Aleixo, de 30 anos, conta que a falta do espaço de convivência possibilitado pelos eventos realizados no Beco da Lama foi sentida imediatamente após o começo da pandemia. Foi então que ele e outros produtores culturais da cidade resolveram se reunir para tentar recriar esse espaço no ambiente virtual. Daí, surgiu a Rádio Meladonna. “Adaptamos o que fazíamos para o formato radiofônico, que tem programas diários, mensais, semanais… nesses programas, fazemos essa troca”, diz Frank.

O público inicial foi principalmente de pessoas que frequentavam o Bar da Meladinha, e sentiam falta dos eventos. Posteriormente, o ambiente virtual permitiu alcançar públicos que, antes, não teriam acesso à produção local. “Antes da pandemia, já estávamos pensando em fazer podcasts e outros espaços de troca. Quando ela chegou, esses planos se aceleraram. Alguns produtores fizeram artes visuais, outros quiseram aproveitar o som… no meu caso, eu comecei fazendo uma série de entrevistas com os DJs da cidade para que as pessoas pudessem conhecer mais quem faz a música, e também o programa da Simpaticona na Boate, no qual às vezes temos DJ sets, falamos sobre albuns, música…”, relata o produtor.

O Bar da Meladonna foi contemplado pela Lei Aldir Blanc, a partir do edital da Prefeitura de Natal. Com os recursos, eles conseguiram organizar um mês especial de programações voltadas à comunidade LGBT, com entrevistas de pessoas importantes na vida cultural da cidade, além de programas voltados para falar sobre sexualidade e prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

Outro espaço de referência para a vida cultural natalense que conseguiu organizar um evento virtual graças aos recursos da Lei Aldir Blanc foi o Bardallo’s. O espaço do produtor cultural Lula Belmont, aberto desde 2005, celebrou seu aniversário de 16 anos com um evento virtual que contou com uma programação de música, teatro, literatura, fotografia e artes plásticas com 18 artistas da cidade.

Para os produtores culturais, no entanto, é consenso que os recursos são insuficientes para amenizar os impactos da pandemia. O Bardallo’s, por exemplo, funciona hoje com apenas 40% de seu faturamento, mesmo após aderir ao sistema de entregas. “Estamos cumprindo o que temos que fazer, passamos de seis a oito meses completamente fechados à noite e nos preocupamos muito com os decretos. Estamos funcionando para almoço e final de tarde, mas com muitas limitações e, mesmo assim, pouco público”, relata Lula.

Editais não atingem todos os trabalhadores

Mesmo os editais pontuais e insuficientes em recursos, no entanto, ficaram inacessíveis a boa parte dos trabalhadores que dependiam da renda obtida pelo Beco da Lama. Muitos tiveram de recorrer ao auxílio emergencial para sobreviver, ou a campanhas de arrecadação. “Se inscrever em um edital é muito complicado. Exige conhecimentos técnicos específicos que muita gente não tem, sejam artistas ou trabalhadores do comércio que atuavam naquele local. Era muito difícil navegar por essa burocracia, prazos e até mesmo acesso à informação”, explica Frank.

Para os que não tinham outras fontes de renda, a reabertura foi feita, mas não garantiu o retorno do público ao local. “Há muitas iniciativas, como a da SAMBA, para arrecadar fundos e tentar ajudar, mas nunca é suficiente para sustentar de fato todas as pessoas que trabalhavam ali, principalmente quem estava na informalidade”, completa.

Através da SAMBA, foram feitas três campanhas de doação de cestas básicas e alimentos. Outras campanhas de arrecadação para remédios e outros itens de necessidade dos mais de 180 cadastrados também foram feitas. “A gente diz que aqui somos realmente os amigos e amigas do Beco da Lama. É por isso que há toda essa mobilização, porque sabemos o que esse espaço significa para nós, pra quem trabalha e vive daqui e para a cultura da cidade”, afirma Gorette.

Durante o mês de junho, a Rádio Meladonna fará uma programação especial paara ajudar o Bar da Meladinha, que também passa por dificuldades financeiras. As ações de solidariedade para garantir a vida do Beco da Lama continuam enquanto os produtores e artistas aguardam, ansiosos, o momento em que será possível retornar de forma segura. “Vamos ter que tirar a poeira do chão e fazer muito trabalho, mas isso com certeza será feito com uma paixão no nível máximo, porque a falta que sentimos é muito grande”, disse Frank.

TN

Nenhum comentário: