Clubes como ABC e América enfrentam dificuldades para segurar suas ‘jóias’ em meio à concorrência e falta de recursos
Numa guerra, proteger as bases é fundamental. No futebol, assim como nas batalhas, também. No entanto, com poucos recursos, concorrência acirrada e a ação conhecida de empresários, clubes como ABC e América têm cada vez mais dificuldades para proteger suas categorias de base e os talentos formados por elas. Hoje, muitos dos jovens craques sequer passam por lá.
A lógica que antes priorizava o desenvolvimento local agora está invertida. Jovens atletas são captados cada vez mais cedo por grandes clubes nacionais — e até internacionais — sem que ABC ou América consigam preparar ou mostrar os mesmos aos torcedores.
A lista de exemplos só cresce: Wallyson Breno, de 17 anos, assinou com o Atlético Mineiro e tem multa de R$ 390 milhões. Carlos Miguel, meia de 16 anos, já é jogador do Fluminense. Marco Polo, revelado no ABC, trocou Natal pelo Sport Recife. Nenhum deles vestiu a camisa dos profissionais nos clubes potiguares.
Segundo o treinador Severo Júnior, que atua com categorias de base no estado, o cenário é reflexo de um modelo que prioriza resultados imediatos: “Os clubes contratam técnicos que precisam mostrar resultado rápido, sem tempo para apostar na base. Quando o garoto sobe, é para compor elenco. E quando entra, é numa tremenda fogueira. Não tem o direito de falhar”, critica.
O desestímulo atinge também as famílias dos atletas. “Hoje, muitos nem sonham mais com ABC e América. Preferem outras opções que ofereçam visibilidade e estrutura”, completou Severo.
Enquanto os clubes tradicionais enfrentam limitações, projetos alternativos ganham espaço. O Santa Cruz-RN tem investido pesado nas categorias inferiores e aparece com frequência nas decisões estaduais. Outras iniciativas, como o SAF Rio Grande do Norte, o Quinho e as escolinhas de bairro, construíram pontes diretas com clubes de ponta do Brasil.
Observadores de Palmeiras, São Paulo, Vasco, Bahia, Sport, Vitória e outros estão cada vez mais presentes no RN, visitando projetos locais para antecipar a captação dos jovens.
“Se vamos investir R$ 30 mil em um atleta ‘aposta’, por que não aplicar isso na base? Em dois ou três anos, surgem jogadores prontos para gerar retorno esportivo e financeiro”, questiona Severo.
Outro fator que impacta diretamente esse processo é o avanço das redes sociais e plataformas de vídeo, que ajudam a projetar atletas em poucos cliques. Um bom desempenho num torneio regional pode viralizar e despertar o interesse de clubes de fora do estado.
Sonho americano
Além dos clubes brasileiros, um novo caminho tem ganhado força: os Estados Unidos. O intercâmbio educacional e esportivo tem atraído jovens potiguares que aliam talento com a bola e bom rendimento escolar. Com bolsas parciais ou, até, integrais, esses garotos têm a chance de estudar e jogar em solo norte-americano.
Um exemplo é Léo Macena, de 15 anos, atleta do QFC. Já aprovado por Atlético-MG, Fortaleza e Athletico-PR, o jovem também recebeu propostas de Flamengo, Fluminense, Internacional e Palmeiras. Mais recentemente, foi procurado por 11 instituições dos EUA, com bolsas que cobrem até 80% dos custos.
A mãe, Eveline Macena, acompanha de perto a trajetória do filho e ressalta a importância de agir com equilíbrio: “O sonho tem que partir dele. Já fomos muito felizes com as aprovações em grandes clubes, mas também recebemos convites de escolas nos EUA. São bolsas de até 70%, mas o restante ainda é caro — cerca de R$ 100 mil por ano. Mesmo assim, ele se encanta com a possibilidade de estudar e jogar num país próspero”, relata.
Ela reforça que a decisão será tomada com maturidade, sem pular etapas. “Sair de casa sem segurança contratual e abrir mão da adolescência pode ser um preço alto. Estamos esperando o momento certo para escolher com calma.”
Para ABC e América, o desafio é dobrado: manter suas estruturas de base funcionando e, ao mesmo tempo, oferecer um projeto atrativo para jogadores e suas famílias. Com o crescimento das SAFs, projetos autônomos e oportunidades no exterior, apenas a tradição já não é suficiente.
A saída passa por planejamento de longo prazo e uma mudança cultural. Lançar jogadores da base não pode ser ato simbólico, mas parte de uma política esportiva sólida, que inclua preparação física, emocional, pedagógica e acompanhamento familiar.
É necessário trabalhar com a ideia de que os talentos continuam surgindo, mas só permanecem se enxergarem futuro no projeto. Um exemplo frustrante disso é a Escola de Futebol do ABC, idealizada por Fernando Suassuna e apresentada em 2019 — até hoje engavetada por falta de recursos e visão estratégica.
Enquanto os clubes não se adaptam a nova realidade, os talentos seguem e vão embora. E os estádios potiguares perdem a chance de testemunhar o nascimento de suas futuras estrelas, como já ocorreu com Mrinho Chagas e Souza, num passado distante.
TN
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